O copista
É sabido que antes da invenção dos tipos móveis por Gutemberg, os textos eram transmitidos, conservados e metamorfoseados pelo lavor dos copistas — aqueles que se dedicavam cotidianamente ao ordinário ofício da escrita. Penso neles assim, como trabalhadores, talvez um pouco mais cultos do que a maioria de seus contemporâneos, mas sem nenhuma qualidade — são mesmo imperceptíveis —, embora certamente cientes da importância do seu trabalho. Mas e se os copistas, ou ao menos um copista tenha, em algum momento, alterado uma vírgula aqui; acrescentado um substantivo — um qualquer — ali; suprimido um adjetivo translúcido* acolá; mudado dois lugares de palavras — tendo, é claro, feito todas as correções que julgava necessárias, quem sabe? Quem sabe. E se. Começa a parecer o início de uma fábula:
— Hay escritores cuya obra no se parece a lo que sabemos de su destino; tal no es su caso, que padeció rigores y soledades que serían la arcilla de los símbolos de sus alegorías.
— Sou um homem de certa idade. A natureza de minha ocupação nos últimos trinta anos fez com que eu tivesse um contato pouco comum com certo grupo de homens aparentemente interessantes e um tanto diferentes, a respeito dos quais nada, que eu saiba, jamais foi escrito... Uma perda irreparável para a literatura... Refiro-me aos copistas ou escrivães.
— La noción de que el blanco puede ser un color terrible ya estaba en...
— I would prefer not to.
— ... havia objeções que tinham sido esquecidas? Certamente que sim. A lógica é, na verdade, inabalável, mas ela não resiste a uma pessoa que quer viver.
— Histoire avec s.
— Quando penso nesse boato, mal posso exprimir as minhas emoções. Cartas mortas! Não se parece com homens mortos?
— Le cinéma filme le travail de la mort.
— On fait du cinéma à partir des images du cinéma.
— Pense num homem que, por natureza e infortúnio, era propenso ao desamparo; poderia haver um trabalho mais adequado para aguçar o seu desamparo do que lidar o tempo todo com cartas mortas, separando-as para jogá-las ao fogo? Pois elas são queimadas todos os anos, aos montes. Por vezes, entre os papéis dobrados, o funcionário lívido encontrava um anel — o dedo ao qual estava destinado talvez estivesse apodrecendo na sepultura —; algum dinheiro, enviado por caridade — aquele que teria sido ajudado talvez já não estivesse sentindo fome; um perdão para os que morreram em desespero; esperança para os que morreram sem nada esperar; notícias boas para os que morreram sufocados por calamidades insuportáveis. Com recados de vida, essas cartas aceleram a morte.
— Ne t'inquête pas. Nous sommes tous encore ici.
— Hay escritores cuya obra no se parece a lo que sabemos de su destino; tal no es su caso, que padeció rigores y soledades que serían la arcilla de los símbolos de sus alegorías.
— Sou um homem de certa idade. A natureza de minha ocupação nos últimos trinta anos fez com que eu tivesse um contato pouco comum com certo grupo de homens aparentemente interessantes e um tanto diferentes, a respeito dos quais nada, que eu saiba, jamais foi escrito... Uma perda irreparável para a literatura... Refiro-me aos copistas ou escrivães.
— La noción de que el blanco puede ser un color terrible ya estaba en...
— I would prefer not to.
— ... havia objeções que tinham sido esquecidas? Certamente que sim. A lógica é, na verdade, inabalável, mas ela não resiste a uma pessoa que quer viver.
— Histoire avec s.
— Quando penso nesse boato, mal posso exprimir as minhas emoções. Cartas mortas! Não se parece com homens mortos?
— Le cinéma filme le travail de la mort.
— On fait du cinéma à partir des images du cinéma.
— Pense num homem que, por natureza e infortúnio, era propenso ao desamparo; poderia haver um trabalho mais adequado para aguçar o seu desamparo do que lidar o tempo todo com cartas mortas, separando-as para jogá-las ao fogo? Pois elas são queimadas todos os anos, aos montes. Por vezes, entre os papéis dobrados, o funcionário lívido encontrava um anel — o dedo ao qual estava destinado talvez estivesse apodrecendo na sepultura —; algum dinheiro, enviado por caridade — aquele que teria sido ajudado talvez já não estivesse sentindo fome; um perdão para os que morreram em desespero; esperança para os que morreram sem nada esperar; notícias boas para os que morreram sufocados por calamidades insuportáveis. Com recados de vida, essas cartas aceleram a morte.
— Ne t'inquête pas. Nous sommes tous encore ici.
Copiado de — Borges — Melville — Kafka — Godard
— Daney (?) — Agamben — São Paulo.
— Daney (?) — Agamben — São Paulo.
* Embora o copista tenha achado por bem quase suprimi-la de seu texto, faço aqui um breve resgate etnomológico da palavra «translúcido»: transe e lucidez se misturam quando se deixa a luz passar sem que se permita ver os objetos do outro lado.
9 comentários:
NÓ!
putz, os. tu é foda pra caralho!....
desculpe, não teve poesia que me mostrasse mais encantada que este ordinário palavrão.
ana
favor não reduzir ordinário ao seu sentido mais ordinário. me parece haver algo mais sutil aí, que é a própria resistência da palavra ordinário em relação a um seu qualquer ultrapassamento: o extraordinário, o espetacular. há uma conotação política evidente. mas isso foi só um devaneio... o que importa mesmo é que parece que você gostou de alguma coisa. e não precisa se sentir culpada por isso.
os
who is pierrou_de_imagens?
onde se lê: favor não reduzir ordinário ao seu sentido mais ordinário.
leia-se: favor não reduzir ordinário ao seu sentido mais QUE ordinário.
ei os, não me sento culpada, embora usasse como talvez palavra do meu decoro: "desculpe"... e sim, entendo o que atravessa "ordinário", ele aqui não foi usado em vão. nem o ordinário, nem o palavrão.
gostei. muito.
a.
Si eres su amiga puedes hablar con él cuando quieras, cierras los ojos y le llamas... soy Ana, soy Ana...
em espanhol, ojos é van gogh?!
OjOs
ps. já disse isso em outros tempos. mas lendo o comentário me lembrei.
yo soy el otro.
una personaje.
persona?
ana
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