9.11.06

O copista

É sabido que antes da invenção dos tipos móveis por Gutemberg, os textos eram transmitidos, conservados e metamorfoseados pelo lavor dos copistas — aqueles que se dedicavam cotidianamente ao ordinário ofício da escrita. Penso neles assim, como trabalhadores, talvez um pouco mais cultos do que a maioria de seus contemporâneos, mas sem nenhuma qualidade — são mesmo imperceptíveis —, embora certamente cientes da importância do seu trabalho. Mas e se os copistas, ou ao menos um copista tenha, em algum momento, alterado uma vírgula aqui; acrescentado um substantivo — um qualquer — ali; suprimido um adjetivo translúcido* acolá; mudado dois lugares de palavras — tendo, é claro, feito todas as correções que julgava necessárias, quem sabe? Quem sabe. E se. Começa a parecer o início de uma fábula:

— Hay escritores cuya obra no se parece a lo que sabemos de su destino; tal no es su caso, que padeció rigores y soledades que serían la arcilla de los símbolos de sus alegorías.

— Sou um homem de certa idade. A natureza de minha ocupação nos últimos trinta anos fez com que eu tivesse um contato pouco comum com certo grupo de homens aparentemente interessantes e um tanto diferentes, a respeito dos quais nada, que eu saiba, jamais foi escrito... Uma perda irreparável para a literatura... Refiro-me aos copistas ou escrivães.

— La noción de que el blanco puede ser un color terrible ya estaba en...

I would prefer not to.

— ... havia objeções que tinham sido esquecidas? Certamente que sim. A lógica é, na verdade, inabalável, mas ela não resiste a uma pessoa que quer viver.

Histoire avec s.

— Quando penso nesse boato, mal posso exprimir as minhas emoções. Cartas mortas! Não se parece com homens mortos?

— Le cinéma filme le travail de la mort.

On fait du cinéma à partir des images du cinéma.

— Pense num homem que, por natureza e infortúnio, era propenso ao desamparo; poderia haver um trabalho mais adequado para aguçar o seu desamparo do que lidar o tempo todo com cartas mortas, separando-as para jogá-las ao fogo? Pois elas são queimadas todos os anos, aos montes. Por vezes, entre os papéis dobrados, o funcionário lívido encontrava um anel — o dedo ao qual estava destinado talvez estivesse apodrecendo na sepultura —; algum dinheiro, enviado por caridade — aquele que teria sido ajudado talvez já não estivesse sentindo fome; um perdão para os que morreram em desespero; esperança para os que morreram sem nada esperar; notícias boas para os que morreram sufocados por calamidades insuportáveis. Com recados de vida, essas cartas aceleram a morte.

— Ne t'inquête pas. Nous sommes tous encore ici.

Copiado de — Borges — Melville — Kafka — Godard
— Daney (?) — Agamben — São Paulo.

* Embora o copista tenha achado por bem quase suprimi-la de seu texto, faço aqui um breve resgate etnomológico da palavra «translúcido»: transe e lucidez se misturam quando se deixa a luz passar sem que se permita ver os objetos do outro lado.

9 comentários:

Anonymous Anônimo escreveu:

NÓ!

20:09  
Anonymous Anônimo escreveu:

putz, os. tu é foda pra caralho!....
desculpe, não teve poesia que me mostrasse mais encantada que este ordinário palavrão.

ana

23:10  
Anonymous Anônimo escreveu:

favor não reduzir ordinário ao seu sentido mais ordinário. me parece haver algo mais sutil aí, que é a própria resistência da palavra ordinário em relação a um seu qualquer ultrapassamento: o extraordinário, o espetacular. há uma conotação política evidente. mas isso foi só um devaneio... o que importa mesmo é que parece que você gostou de alguma coisa. e não precisa se sentir culpada por isso.

os

15:44  
Anonymous Anônimo escreveu:

who is pierrou_de_imagens?

15:47  
Anonymous Anônimo escreveu:

onde se lê: favor não reduzir ordinário ao seu sentido mais ordinário.

leia-se: favor não reduzir ordinário ao seu sentido mais QUE ordinário.

15:53  
Anonymous Anônimo escreveu:

ei os, não me sento culpada, embora usasse como talvez palavra do meu decoro: "desculpe"... e sim, entendo o que atravessa "ordinário", ele aqui não foi usado em vão. nem o ordinário, nem o palavrão.

gostei. muito.

a.

01:52  
Anonymous Anônimo escreveu:

Si eres su amiga puedes hablar con él cuando quieras, cierras los ojos y le llamas... soy Ana, soy Ana...

17:11  
Blogger glaura escreveu:

em espanhol, ojos é van gogh?!
OjOs

ps. já disse isso em outros tempos. mas lendo o comentário me lembrei.

19:12  
Anonymous Anônimo escreveu:

yo soy el otro.

una personaje.

persona?

ana

19:14  

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