1.11.06

uma comunidade menor

O vento está prestes a encontrar-se com as folhas das árvores.
Paradas ali, duas pessoas aguardam o movimento.



— Fazer um festival não é fazer um filme.

— Certamente mobiliza outros esforços, outros afetos...

— Mas todos numa mesma direção. Os filmes são feitos para nos mostrar o mundo. Os festivais, para nos mostrar os filmes.

— É tudo cinema!

— O que chamamos, nós, de cinema?

— Tomado ao pé da letra é uma imagem do mundo em que vivemos. Se eu te mostro o ABC da greve, por exemplo, você diz: é o Lula.

— Então tomemos o cinema ao pé da letra e digamos: as pessoas dormem de noite; o cinema é o único lugar em que se dorme de olhos abertos, no escuro.

— Então o cinema é o sonho.

— Mas não um sonho particular, menos ainda um sonho privado. Há aí algo de coletivo.

— A tal ponto que quem entra junto no cinema é tocado por esse estranho poder de fazer o mundo dormir.

— Para nele estar ainda mais acordado.

— É esta, pois, a função de um festival: fazer com que os filmes adormeçam o mundo.

— Mas não sejamos tão rápidos. Não falo apenas de uma reunião de filmes, mas de uma comunhão de desejos.

— E então do fato de que não é um festival feito por mera simpatia política ou estética, mas o resultado de longas (quase intermináveis) discussões políticas e estéticas.

— Precisamente o que falta à televisão, não te parece?

— É possível ainda que nela não falte nada... Mas, ao contrário, haja mesmo um excesso. Excesso de profissionalismo, triste até, que priva aqueles que a realizam de seus desejos.

— O que quero dizer é isso: há imagens, há filmes, há muitos festivais que parecem não terem sido feitos por ninguém, embora certamente contem com a colaboração de várias pessoas.

— Há portanto alguma vantagem em ser menor...

— Sim, nós ainda sorrimos.

— Mas talvez não haja nisso mérito algum, apenas uma necessidade.

— O que, em si, cria uma comunidade ínfima, minúscula.

— Ou ainda a amizade, os bons encontros...

— Uma comunidade sem importância nenhuma, a nossa comunidade.

— Que se realiza há dez anos. Consegue imaginar um outro mundo assim?

— Não é questão de imaginar. Mas de ver.

— Ninguém vê a nossa fogueira.

— Pouco importa, vamos fazê-la.

— Há mais fogueiras do que estrelas.

— Ver é também uma questão de crença, amigo. Imaginar, de imagens... Vê esta fraternidade entre o documentário e a ficção?

— Jogue as brasas.

— Tem razão. Não vamos deixar que ela se apague.

— Tenho pois de confessar que raramente vou ao cinema e que isso não se deve apenas às más condições de visionamento dos filmes.

— Deve-se então ao quê?

— A uma pergunta que me faço: o que ainda podemos dizer antes ou depois de um filme?

— Por exemplo: que queremos assisti-lo com a mesma alegria com que se encontra um amigo.

— Eu e você?

— Olha para o simples pretexto da sua felicidade: não te parece que ainda estamos todos aqui, antes e depois de um filme?

— Passemos.


Diálogo:
Daniel Ribeiro, Oswaldo Teixeira

Belo-Horizonte/Lisboa,
29 e 30 de out. de 2006

Montado com excertos (deslocados) de:
Abbas Kiarostami, Cacique Rubiaçu, Cesare Pavese, Cristina Marti,
Forugh Farrokhzad, Jean-Luc Godard, Jean Rouch, Rui Chafes, São Paulo.

2 comentários:

Anonymous Anônimo escreveu:

daniel ribão, schifaizfavoire

14:20  
Anonymous Anônimo escreveu:

esteja dito.

21:58  

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