20.9.06

Um canto escuro

A poesia e o cinema mantêm relações desde que se encontraram pela primeira vez. Ou melhor, desde que pela primeira vez alguém encontrou um filme. Ou melhor ainda, toda vez que um filme encontra alguém pela primeira vez.

Nas primeiras exibições dos filmes Lumière, por exemplo, o que mais impressionou o público foi a simples magia de ver o vento encontrar-se com as folhas de uma árvore. Concisão, poesia. E pode ser mesmo que a banalidade (poderia dizer igualmente, a sensação anestésica) das imagens atuais tenha ao menos ajudado nisso: a carregar de poesia esta cena primordial, esta pequena emoção que nossos antepassados sentiram e que talvez ainda sejamos capazes de sentir. Senão, qual seria a outra forma de encarar uma pessoa que se emociona ao ver ali em sua frente, destacada na tela luminosa de uma sala escura, essa imagem do mundo?

Apenas um olhar poético é suficientemente redentor para perdoar este instante de inocência. Apenas aquele ainda capaz de «olhar para o simples pretexto de sua felicidade»; capaz, portanto, de salvar uma imagem da morte.


(As crianças, parece-me, fazem isso sem querer)

Outro nascimento

Todo meu ser é um canto escuro
que levará você
interminavelmente
até a aurora da vida
Neste canto eu suspirei você suspirou
Neste canto
eu grafei você na árvore na água no fogo

A vida talvez seja
uma longa rua, na qual uma mulher segurando uma cesta
passa todos os dias

A vida talvez seja
uma corda, com a qual um homem se lança de um galho
A vida talvez seja uma criança que volta pra casa da escola

A vida talvez seja acender um cigarro
no repouso narcótico entre fazer amor e fazer de novo
ou o olhar distante de alguém que passa
e tira o chapéu pra outro alguém que passa
com um sorriso no rosto e um bom-dia

A vida talvez seja este preciso momento
em que meu olhar destrói-se na pupila de seus olhos
e talvez também esteja no sentimento
que colocarei na impressão da lua
e na percepção da Noite

Numa vasta sala como a solidão
meu coração
vasto como o amor
olha para o simples pretexto de sua felicidade
para a bela decadência das flores no vaso
para a muda que você plantou em nosso jardim
e o som dos canários
que cantam pela vastidão da janela

Forugh Farrokhzad
(fiz esta versão a partir do inglês, porque - pena! - não sei essa bela língua), poeta iraniana, autora de E o vento nos levará, que inspirou o filme homônimo de Abbas Kiarostami, e que começa assim: «Na minha noite, infelizmente tão curta, o vento está prestes a encontrar-se com as folhas das árvores».