28.10.06

Poder-se-ia falar da solidão de uma casa?



« No que você chama de "modos de existência", e que Foucault chama de "estilos de vida", há uma estética da vida; você o lembrou: a vida como obra de arte. Mas também uma ética! ».
Didier Eribon (racorda com isso).

Uma casa é uma casa. Não é uma noção, não é um conceito, não é uma metáfora. É uma casa apenas. É feita para que nela as pessoas habitem. Mas - e sem que isso diminua ou aumente a sua dor - pode ser que a casa esteja vazia, vivendo as intensidades deste intervalo da espera, entre um e outro habitante. Poder-se-ia falar da solidão de uma casa?

Todo gesto, qualquer um, revela sempre uma necessidade mas nem sempre uma vontade. Lembro apenas de um, o movimento involuntário do olho no momento em que se sonha. (E não seria assim tão descabido dizer que temos necessidade dos sonhos, ou seria? Embora nem sempre os desejemos...). Quando criança, por exemplo, lembro-me de um sonho recorrente: a imagem da Terra desabitada depois de uma guerra nuclear. Era a imagem oferecida por um programa de TV (o "Fantástico"?) que habitava este meu pesadelo. Acordava quase sempre bastante desesperado. Pode-se mesmo dizer que eu tivesse necessidade desse pesadelo/desespero, mas não exatamente vontade. Era um acontecimento, digamos, involuntário, que certamente acelerava meus olhos aos olhos de que me visse dormindo.

Certa vez Michaux disse que «o mal é o ritmo dos outros». O que pensar, então (se tivéssemos coragem suficiente para imaginar tal pesadelo!), de um ritmo audiovisual hegemônico? Penso ainda na televisão... Que sempre se transforma, é verdade. Mas transforma-se - e talvez esteja aí o segredo do poder - imediatamente, hegemonicamente. Como se - e aí talvez sua estratégia - não nos deixasse opções para escapar desse seu ritmo.

Mas o artista escapa. É este o seu trabalho, o seu modo de vida, seu jeito singular de existir. (E será por isso que alguns nos falam da «vida como obra de arte»?). O gesto artístico, como qualquer gesto, é uma necessidade, nem sempre uma vontade. A vontade do artista, isso que o diferencia, talvez seja apenas: mostrar ao outro os seus gestos. É por isso aliás que a arte está, em qualquer definição das afecções, bem ao lado da generosidade.

(As novas vozes apenas começam a ser escutadas... São sem dúvida menores, mas o são «sem abrandar...» Sem abrandar.)

Um artista é, portanto, um artista. Não é um sonhador. Ele não sonha o sonho que quer, mas o sonho necessário. Ele percebe o pesadelo no qual eventualmente vive, mas por estar só, suporta-o acordado. Quer dizer, realiza a sua necessidade. Seria esta uma definição biológica da vida? Talvez. Mas ainda não uma boa definição para o artista. Pois além de suportar, o artista o expõe. Participa dele à sua maneira. Narrando-nos as histórias dos nossos dias. E por «nossos» entendo: os que passaram, os que hão-de-vir. Nós, uma comunidade. O artista seria então aquele que, acordado, quer acordar ainda mais. Mas o que é acordar mais?

Um artista é um artista. Não é um pedreiro nem um corretor de imóveis. Embora às vezes também erga uma casa ou esteja lá apenas para nos fazer vê-la: aluga-se - como qualquer trabalhador o seu tempo. Mas situa-se na soleira. Sempre pronto a escapar.

Quem escuta o seu sim?

(Para Fernanda Goulart e Cristina Marti).

21.10.06

O primeiro filme do mundo?



A Besta inominável encerra o
xxxxxdesfile do gracioso rebanho,
xxxxxcomo um ciclope burlesco.

Oito esgares são o seu adorno
xxxxxdividem a sua loucura.

A Besta arrota devotamente no
xxxxxar campestre.

O ventre inchado e pendente está
xxxxxdorido, vai esvaziar-se da
xxxxxsua prenhez.

Dos cascos às presas inúteis,
xxxxxela está envolta em fedor.



Assim me aparece no friso de
xxxxxLascaux, mãe fantasticamente
xxxxxmascarada,

A sabedoria de olhos cheios de
xxxxxlágrimas.


René Char,
tradução de Silvina Rodrigues Lopes

Fazer, a poesia

« Se compreendemos, se acedemos de um modo ou de outro a uma orla de sentido, é poeticamente. Isso não quer dizer que qualquer tipo de poesia constitua uma medida ou um meio de acesso. Isso quer dizer - e é quase o contrário - que apenas esse acesso define a poesia, e que ela só tem lugar a partir do momento em que ele tem lugar.

É a razão pela qual a palavra «poesia» designa tanto uma espécie de discurso, um género no seio das artes, ou uma qualidade que pode apresentar-se fora dessa espécie ou desse género, como pode estar ausente nas obras dessa espécie ou desse género. Segundo Littré, a palavra, tomada no sentido absoluto, significa: «As qualidades que caracterizam os bons versos, e que podem ser encontrados noutros lugares que não em versos. (...) Esplendor e riqueza poéticos, mesmo na prosa. Platão está repleto de poesia.» A poesia é assim a unidade indeterminada de um conjunto de qualidades que não estão reservadas ao tipo de composição chamado «poesia», e que não podem em si próprias ser designadas senão alterando com o epíteto «poético» termos como riqueza, esplendor, ousadia, cor, profundidade, etc. »

Jean-Luc Nancy,
Resistência da poesia (grifo meu).

14.10.06

Retrospectiva Glauber Rocha

Na sala Humberto Mauro, de 12 a 27 de outubro.
Os filmes serão todos exibidos em DVD.



Pátio
, 11 min., Bahia, 1959
Primeiro filme de Glauber


12 / qui
17h – Terra em Transe
20h – Deus e o Diabo na Terra do Sol

13 / sex
17h – Barravento
19h – O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro
21h – O Leão de 7 Cabeças

14 / sab
15h – Cabezas Cortadas
17h – Terra em Transe
20h – Deus e o Diabo na Terra do Sol

15 / dom
16h – Barravento
18h – Sessão de Curtas + Jorjamado no Cinema
20h – Câncer

16 / seg
17h – Sessão de Curtas + Jorjamado no Cinema
21h – Claro

17 / ter
17h – Deus e o Diabo na Terra do Sol
19:15h – Documentário: Depois do Transe / sessão comentada por Mateus Araújo

18 / qua
17h – O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro
21h – Câncer

19 / qui
16h – Terra em Transe
19h – Cabezas Cortadas
21h – O Leão de 7 Cabeças

20 / sex
17h – Câncer
19h – Barravento
21h – Sessão de Curtas + Jorjamado no Cinema

22 / dom
16h – O Leão de 7 Cabeças
18h – O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro
20h – Cabezas Cortadas

23 / seg
17h – Sessão de Curtas + Jorjamado no Cinema
21h – Deus e o Diabo na Terra do Sol

24 / ter
17h – O Leão de 7 Cabeças
19h – Câncer
21h – Cabezas Cortadas

25 / qua
17h – Barravento
21h – O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro

26 / qui
17h – Cabezas Cortadas
19h – Sessão de Curtas + Jorjamado no Cinema
21h – Terra em Transe

27 / sex
17h – O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro
19h – O Leão de 7 Cabeças
21h – Claro

Os curtas são:

Pátio | Brasil, 1959, 11’
Amazonas, Amazonas | Brasil, 1966, 15’
Maranhão 66 | Brasil, 1966, 15’
1968 | Brasil, 1968, 22’

Quamvis incertum, à maneira de Espinosa; ou a poesia necessária

« Assidua autem meditatione eo perveni, ut viderem, quod tum, modo possem penitus deliberare, mala certa pro bono certo omiterem. Videban enim me in summo versari periculo, et me cogi, remedium, quamvis incertum, summis viribus quaerere; veluti aeger lethali morbo laborans, qui ubi mortem certam praevidet, ni adhibeatur remedium, illud ipsum, quamvis incertum, summis viribus cogitor quaerere, nempe in eo tota ejus spes est sita; illa autem omnia, quae vulgus sequitur, non tantum nullum conferunt remedium ad nostrum esse conservandum, sed etiam id impediunt, et frequenter sunt causa interitus eorum, qui e a possident, et semper causa interitus corum, qui ab iis possidentur. »



Toda arte é uma forma de redenção. Por redenção entendo: esforço. Esforço não apenas para suportar, mas para gerar mais vida na terra. Desejo, se quiserem. A terra é esse planeta azul que flutua num tempo/espaço absolutamente infinito. Por absolutamente infinito entendo: até onde/quando - como o pó que passa por uma peneira ou as constelações - nosso intelecto concebe e nossas afecções alcançam. Mas o absolutamente infinito é ainda constituído pelo infinitamente outro: por infinitas formas de concepção e de extensão... Numa delas, a nossa, esta concepção e esta extensão são tão ilimitadas quanto o infinito. O que limita - provisoriamente - o infinito é a matéria. Limita, coage. Um corpo, por exemplo. Sem este limite êfemero eu não sentiria, ainda que incerto, o calor do sol que se põe sobre a minha pele. A superfície é pois o ponto de contato de um limite (necessário) com o ilimitado (livre), com o absolutamente infinito (que em outras épocas já foi chamado de deus). Passando pelas peneiras e constelações de um limite qualquer (intelecto, audição, visão, tato, olfato, paladar etc. etc. etc.), o absolutamente infinito desvela-se sob uma forma; coerente, na maior parte do tempo, tanto quanto a coerência desse pássaro que agora passa impromptamente por mim. A essa coerência poderíamos dar o nome de ética. Mas para que esta ética seja possível, seria antes preciso dar um outro nome a ela, poesia. Sem a qual seria absolutamente impossível escutar isso: « Diz-se poesia o que existe exclusivamente pela necessidade da sua natureza e por si só é determinado a agir: «o amor realizado do desejo que permanece desejo» (René Char); e dir-se-á necessário, ou mais propriamente, coagido, o que é determinado por outra coisa a existir e a operar de certa e determinada maneira. » Poesia é o outro nome da arte, não já por sua natureza, mas apenas quanto ao modo de a alcançar. Como claramente se conclui do que ficou dito.

5.10.06

Nota sobre o dispositivo

« Proponho-lhes nada menos que uma geral e maciça divisão do existente em dois grandes grupos ou classes: de um lado os seres viventes (ou as substâncias) e de outro os dispositivos nos quais estes estão incessantemente capturados.

Generalizando posteriormente a já amplíssima classe dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder é em certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e - porque não - a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata - provavelmente sem dar-se conta das conseqüências que se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar capturar. »

Giorgio Agamben, O que é um dispositivo?
(conferência realizada no Brasil, em setembro de 2005)