28.9.06

Indo-me eu por aí abaixo

Na história do cinema há sempre aqueles cineastas sobre quem a gente ouve falar ou eventualmente até lê uma coisa ou outra a respeito, mas cujos filmes são raríssimos e quase impossíveis de ver. É o caso de António Reis e Margarida Cordeiro, um casal de cineastas portugueses que realizou apenas quatro filmes. Três dos quais, no Nordeste de Portugal, na região de Trás-os-Montes.



Nunca vi esses filmes, mas há um belíssimo blog inteiramente dedicado à sua obra. Feito por um outro António, o Neves. Vale a pena uma navegação mais demorada e cuidadosa. É aí que passo o tempo enquanto não chega o dia de ver os sons e as imagens que, agora, tanto desejo. Inclusive, foi de lá que retirei a foto com este curioso travelling em bicicleta, ao qual dei o nome de «Indo-me eu por aí abaixo»*; e este trecho de uma entrevista com os dois cineastas.

« Margarida Cordeiro:

A propósito de «Rosa de Areia»: é um filme para quem pode ainda ver e ouvir como que pela primeira vez; como se fosse o primeiro filme surgido na terra e falando sobre ela.
Houve a luta com as formas, muito tempo antes de serem filmadas; o filme «mental» mudou vezes sem conta, mesmo após ter sido sujeito à escrita prévia da(s) découpage(s). Filmadas, as formas revelaram-se muito belas, estranhas, hostis ou mesmo incompatíveis (planos que não puderam incorporar-se na montagem). Impunham-se, rejeitavam-se, atraíam-se, estavam vivas.
Finalmente, «Rosa de Areia» estava ali, contra mim (fazendo parte de mim), no escuro das salas, palimpsesto complexo e fugitivo no ecrã, jogo de luzes e sombras, de sons e de silêncio.
E a alegria muito funda e grave durante todo este longo e inenarrável processo.

António Reis:

Eu diria que «Rosa de Areia» é, totalmente, um filme de matérias. Matérias em permanente devir: o vento natural torna-se vento de tuba, o vestido das actrizes contracena com as nuvens, a tri-dimensionalidade cai aos pés da bi-dimensionalidade, o plano-sequência é emparedado pelo fixo, a música é o silêncio e a cor modulada, a luz mais pura passa a flutuante e difusa.
O sentido do labor sobre as matérias (implicando-se e implicadas) não pode, pois, delimitar-se: é múltiplo, refaz-se constantemente e sobretudo interroga, elabora formas...
«Rosa de Areia» não passa como uma torrente: esvai-se em lenta rotação, em lenta translação, movido pela insubmissa energia das formas cinematográficas. »

14 de Agosto de 1989

Fala a verdade: você também não ficou com vontade de ver esses filmes?

* «Indo-me eu por aí abaixo...» é o nome de uma canção transmontana, que continua assim: «... a buscar os meus amores».

27.9.06

A morte espelhada no sonho

Essa é uma daquelas imagens impossíveis de esquecer. Jean Seberg em Acossado, anunciando no meio de um boulevard de Paris o The New York Herald Tribune. Como não se apaixonar à primeira vista? Como não reviver «a emoção de já ter amado»? Como não se deixar seduzir até o esquecimento? Como oferecer uma qualquer resistência a entrar neste sonho? Numa já distante aula de cinema alguém advertia sobre o perigo de deixar-se capturar pelo sonho de outrem. (Mas os cortes sucessivos no mesmo plano não seriam também uma forma cinematográfica de nos advertir sobre este mesmo perigo?).

Esta imagem inesquecível, se não me engano, aparece em Os sonhadores (The dreamers, 2003), de Bernardo Bertolucci. Imagino que ele devia estar querendo fazer uma homenagem a uma época em que o cinema ainda se permitia sonhar com uma revolução. Possibilidade, aliás, que seu filme praticamente nega. É Philippe Garrel, que uma vez também já sonhou com Jean Seberg, quem efetivamente faz, em Os amantes constantes (Les amants réguliers, 2005), a mais bonita homenagem ao cinema, à revolução e ao amor. Um filme longo, com planos não menos longos, e no qual, como comentou uma amiga, não há nenhuma cena de sexo, nem mesmo um beijo na boca. Pois eu nem tinha percebido isso, é uma coisa que no filme não faz falta. E não faz mesmo. Mas de repente este comentário, em contraste com o filme de Bertolucci, me fez ver claramente esta postura política (sem dúvida menor, mas nem por isso menos importante): escolher não mostrar aquilo que já estamos cansados de ver e carecas de saber num mundo em que tudo é imediatamente visível, beirando mesmo a pornografia. Às vezes esses gestos - que revelam mais do que um mero descontentamento, mas uma efetiva resistência à política dominante - nos aparecem sob as formas mais imperceptíveis...

... Ainda bem que ainda temos por perto quem nos faça atentar para esses detalhes.

***

« Conheci a Jean, uma atriz de cinema que já não atuava em filmes.

Ela matou-se.

Apareceu-me num sonho uma mulher com o rosto como o da Jean.

Tal como em Spirite de Théophile Gautier, a suicida aparece ao jovem no espelho, e arrasta-o para a morte; a Jean chamava-me para o outro mundo...


Mas a história teve lugar na vida real assim:

Nesse dia eu estava no meu quarto, a fumar haxixe com toda a precisão que o hábito nos dá.

O sol de invernno desaparecia por trás das cortinas. Adormeci a meio da noite e chorei na almofada.

("Estou cansado... cansado..., pensei eu, da minha vida de solitário.") Mas a emoção de já ter amado e a beleza da minha vida, que eu acreditava ser única, fizeram com que me viesse outras lágrimas aos olhos e eu acabei por voltar a adormecer. »

Philippe Garrel, Journal d'un cinéaste (1984).

25.9.06

Only sound remains

20.9.06

Um canto escuro

A poesia e o cinema mantêm relações desde que se encontraram pela primeira vez. Ou melhor, desde que pela primeira vez alguém encontrou um filme. Ou melhor ainda, toda vez que um filme encontra alguém pela primeira vez.

Nas primeiras exibições dos filmes Lumière, por exemplo, o que mais impressionou o público foi a simples magia de ver o vento encontrar-se com as folhas de uma árvore. Concisão, poesia. E pode ser mesmo que a banalidade (poderia dizer igualmente, a sensação anestésica) das imagens atuais tenha ao menos ajudado nisso: a carregar de poesia esta cena primordial, esta pequena emoção que nossos antepassados sentiram e que talvez ainda sejamos capazes de sentir. Senão, qual seria a outra forma de encarar uma pessoa que se emociona ao ver ali em sua frente, destacada na tela luminosa de uma sala escura, essa imagem do mundo?

Apenas um olhar poético é suficientemente redentor para perdoar este instante de inocência. Apenas aquele ainda capaz de «olhar para o simples pretexto de sua felicidade»; capaz, portanto, de salvar uma imagem da morte.


(As crianças, parece-me, fazem isso sem querer)

Outro nascimento

Todo meu ser é um canto escuro
que levará você
interminavelmente
até a aurora da vida
Neste canto eu suspirei você suspirou
Neste canto
eu grafei você na árvore na água no fogo

A vida talvez seja
uma longa rua, na qual uma mulher segurando uma cesta
passa todos os dias

A vida talvez seja
uma corda, com a qual um homem se lança de um galho
A vida talvez seja uma criança que volta pra casa da escola

A vida talvez seja acender um cigarro
no repouso narcótico entre fazer amor e fazer de novo
ou o olhar distante de alguém que passa
e tira o chapéu pra outro alguém que passa
com um sorriso no rosto e um bom-dia

A vida talvez seja este preciso momento
em que meu olhar destrói-se na pupila de seus olhos
e talvez também esteja no sentimento
que colocarei na impressão da lua
e na percepção da Noite

Numa vasta sala como a solidão
meu coração
vasto como o amor
olha para o simples pretexto de sua felicidade
para a bela decadência das flores no vaso
para a muda que você plantou em nosso jardim
e o som dos canários
que cantam pela vastidão da janela

Forugh Farrokhzad
(fiz esta versão a partir do inglês, porque - pena! - não sei essa bela língua), poeta iraniana, autora de E o vento nos levará, que inspirou o filme homônimo de Abbas Kiarostami, e que começa assim: «Na minha noite, infelizmente tão curta, o vento está prestes a encontrar-se com as folhas das árvores».

18.9.06

Por quê você faz cinema?



« Para chatear os imbecis. Para não ser aplaudido depois de seqüências dó de peito. Para viver a beira do abismo. Para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público. Para que conhecidos e desconhecidos se deliciem. Para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo. Porque, de outro jeito a vida não vale a pena. Para ver e mostrar o nunca visto, o bem e o mal, o feio e o bonito. Porque vi 'Simão no Deserto'. Para insultar os arrogantes e poderosos quando ficam como cachorros dentro d'água no escuro do cinema. Para ser lesado em meus direitos autorais. »

Joaquim Pedro de Andrade,
em resposta a uma enquete do jornal Libération.

Deformações



« Os alemães eram seres humanos como os outros. O que pôde os ter conduzido a este desastre? A falsa moral que é a essência mesma do nazismo, o abandono da humildade em proveito do culto ao heroísmo, a exaltação da força mais do que a da fragilidade, o orgulho contra a simplicidade. Foi por isso que escolhi um ser inocente a quem a deformação de uma educação utópica leva a cometer um crime, embora ele o creia um ato heróico. »

Roberto Rossellini, sobre Alemanha, ano zero.

Em meio às ruínas

Uma forma de extrair do mundo as boas perguntas. E de fazê-las em movimento. De tornar o tempo sensível, alguém já dizia. E de dar a ele um relevo. Tarefa de mais a mais minoritária. Ou seja, interminável, aparentemente inútil, mas extremamente necessária. Ainda mais numa época, outro alguém já dizia, em que assistimos "ao vivo" a uma tentativa maciça de destruição do tempo.

No entanto, alguns ainda habitam esta casa em meio às ruínas, e pacientemente suportam o estridente som dos bombardeios e a terrível imagem dos corpos multilados. Não estão sós. Assim como não há nenhuma exclusividade, também não há nada de heróico nesse gesto. Apenas trabalho. Mas o cinema, por estar no campo de batalha - por ser ele mesmo o campo ou o plano onde ela se dá: a imagem - ocupa uma posição privilegiada na luta. E nos revela claramente este pequeno paradoxo: enquanto o objetivo do inimigo for destruir o tempo, todo gesto de resistência sempre soará anacrônico. Não é assim que soa todo farrapo e a nossa atual miséria?

17.9.06

Os amigos que faltam

« Foi assim que há tempos, quando necessitei, inventei para mim os 'espíritos livres'. Não existem esses 'espíritos livres', nunca existiram - mas naquele tempo, como disse, eu precisava deles como companhia, para manter a alma alegre em meio a muitos males (doença, solidão, acedia, inatividade): como valentes confrades fantasmas, com os quais proseamos e rimos, quando disso temos vontade, e que mandamos para o inferno, quando se tornam entediantes - uma compensação para os amigos que faltam. »

Nietzsche, Humano, demasiado humano.