3.12.06

Mais cativante que o amor


Artaud escreve sobre A idade da Terra, de Glauber Rocha.

« 1/ Gosto de cinema.
Gosto de qualquer tipo de filme.
Mas todos os tipos ainda estão por criar.
Acredito que o cinema pode admitir apenas um certo tipo de filme: só aquele em que todos os meios de ação sensual do cinema tiverem sido utilizados.
O cinema implica uma subversão total de valores, uma desorganização completa da visão, da perspectiva da lógica. É mais excitante que o fósforo, mais cativante que o amor. Não podemos nos dedicar indefinidamente a destruir seu poder de galvanização pelo uso de assuntos que neutralizam seus efeitos e pertencem ao teatro.

2/ Exijo, portanto, filmes fantasmagóricos, filmes poéticos, no sentido denso, folosófico da palavra; filmes psíquicos.
O que não exclui nem a psicologia, nem o amor, nem o desnudamento de nenhum dos sentimentos do homem.
Mas filmes onde se opere uma trituração, um remanejamento das coisas do coração e do espítrio, a fim de lhes conferir a virtude cinematográfica que se está buscando.
O cinema exige temas excessivos e uma psicologia minuciosa. Exige a rapidez, mas sobretudo a repetição, a insistência, a reiteração. A alma humana em todos os seus aspectos. No cinema, somos todos [ ](1) – e cruéis. A superioridade e a lei poderosa dessa arte vêm do fato de seu ritmo, sua velocidade, seu caráter e distanciamento da vida, seu aspecto ilusório, exigirem um crivo cerrado e a essencialização de todos os seus elementos. Por isso ele exige de nós assuntos extraordinários, estados culminantes da alma e uma atmosfera visionária. O cinema é um notável excitante. Age diretamente sobre a massa cinzenta do cérebro. Quando o sabor da arte for aliado, em proporção suficiente, ao sabor psíquico que ele contém, ele deixará para trás o teatro, que relegaremos ao baú de recordações. Pois o teatro já é uma traição. Vamos ver aí muito mais os atores que as obras, pois são eles sobretudo que agem sobre nós. No cinema o ator não passa de um sogno(2) vivo. Ele é, sozinho, toda a cena, o pensamento do autor e a sequência dos acontecimentos. É por isso que nós não pensamos nessas coisas. Carlitos interpreta Carlitos, Pickford interpreta Pickford, Fairbanks interpreta Fairbanks. Eles são o filme. Não poderíamos imaginar o filme sem eles. Estão em primeiro plano, onde não incomodam ninguém. É por isso que não existem. Nada se interpõe entre nós e a obra. O cinema tem, sobretudo, a virtude de um veneno inofensivo e direto, uma injeção subcutânea de morfina. É por isso que o objeto do filme não pode ser inferior ao poder de ação do filme – deve conter o maravilhoso. »

(1) Uma lacuna no documento.
(2) No original, signo.

1 comentários:

Anonymous Anônimo escreveu:

É de facto a intensidade que diferencia a qualidade dos filmes, a qual só pode ser conseguida por um apropriado uso da linguagem cinematográfica.

Parabéns pelo blog!

06:21  

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